Alguém da plateia arriscou a provocação, mas mal conseguiu terminar a palavra “anistia” — o “não” foi instantaneamente soterrado pelo riff inicial de “Ciúme”. Roger olhou para os companheiros com aquele sorriso nervoso de quem já esperava o golpe. Um gesto cúmplice e automático, típico de quem aprendeu há décadas que provocação faz parte do ofício.O Ultraje a Rigor tem em “Nós Vamos Invadir Sua Praia” um dos discos mais sólidos — e paradoxais — do rock nacional. Onze faixas, dez hits. “Se Você Sabia” e “Zoraide” ficaram no banco de reservas, mas o resto é um desfile de clássicos. Um daqueles raros álbuns que se ouve do começo ao fim sem vontade de pular nada. O sucessor, “Sexo”, repetiu a façanha em menor escala: menos hinos, mas ainda quatro grandes canções que sobrevivem no imaginário coletivo, tocadas à exaustão em rádios, bares e ressacas.O brilho, claro, foi se apagando com o tempo. Os anos 90 fecharam as portas do mainstream para quase todo o rock brasileiro — mas não para o público do interior, que continuou recebendo o Ultraje como se ainda estivéssemos em 1987. Mesmo quando o som já não estava nas paradas, os palcos seguiam lotados. E na virada dos 2000, Roger ainda cravou mais um hit, “Nada a Declarar”, com seu refrão inflamado que reciclava a velha verve debochada de “Filho da Puta” e “Chiclete”. Em meio ao marasmo sonolento da música brasileira da época, era quase um ato de resistência — ainda que disfarçado de piada.No festival em questão, o clima era de pólvora contida. No mesmo lineup, Raimundos e Ultraje a Rigor — duas bandas cujos líderes, Digão e Roger, colecionam desavenças com meio mundo do rock nacional, agora turbinadas por suas posições políticas nada discretas. Some-se a isso o IRA!, que ocupa o extremo oposto do espectro ideológico, mas com a mesma agressividade verborrágica, e o backstage parecia mais um campo minado do que um camarim.No fim do show, Roger tentou posar de diplomata. Anunciou ao microfone que ele e Edgard Scandurra haviam feito as pazes — “ele veio me pedir desculpas”, disse, com aquele ar de satisfação passivo-agressiva que já virou marca registrada. E completou, com a ironia que só ele acredita ser elegância: “Preferia que tivesse sido em público, mas tá valendo.”O típico Roger: corrosivo, autoconfiante, incapaz de deixar a provocação morrer. O mesmo garoto de 1985 — só que agora tocando para um país que parece ter esquecido que o deboche também era uma forma de lucidez.
Source: popices: SOMOS ROCK
