Roger Moreira, do Ultraje a Rigor, no segundo dia da segunda edição do festival SWU (Starts With You) Music and Arts Festival, em Paulínia, em 2011 – Zanone Fraissat/Folhapress
Como canções de Ultraje, Caetano, Chico e Milton deram o tom das Diretas
Músicas de variados estilos e artistas viraram hinos do movimento que tomou as ruas do país
Oscar Pilagallo
Jornalista, é autor de “História da Imprensa Paulista”, entre outros livros. Lança agora “O Girassol que nos Tinge: Uma história das Diretas Já, o Maior Movimento Popular do Brasil” (ed. Fósforo), sobre os 40 anos das Diretas
[RESUMO] No texto a seguir, adaptado de capítulo do livro “O Girassol que nos Tinge: Uma História das Diretas Já, o Maior Movimento Popular do Brasil”, o jornalista Oscar Pilagallo conta como uma lista eclética e improvável de canções, do rock à MPB tradicional, embalaram as multidões que iam às ruas pela redemocratização do país.
Num dia qualquer de 1982 —entre a surpreendente derrota da seleção brasileira na Copa da Espanha, em 5 de julho, e a auspiciosa primeira eleição direta para governadores em mais de 15 anos, em 15 de novembro—, Roger Moreira tomou uma chuveirada que mudaria sua vida e emprestaria irreverência à trilha sonora da campanha das Diretas. Cantarolando na ducha, acabou entoando, por uma associação sonora qualquer, a palavra “inútil”, que ficou reverberando em sua cabeça até se transformar no refrão “a gente somos inútil”.
Nascido em família da classe média paulistana residente na chique região dos Jardins, Roger estava distante do perfil dos jovens engajados que militavam no então ressurgido movimento. Adolescente, a transgressão não ia além dos sapos que, apanhados na fazenda dos pais, soltava nas aulas. Em vez de contestação juvenil, algazarra inconsequente. Tinha largado o vício do fliperama, mas ainda gostava de entrar pela madrugada brincando de videogame ou folheando gibis, como “Pato Donald”. “Eu não era muito politizado, mal sabia o que era esquerda e direita”, lembraria quatro décadas mais tarde, quando já estava alinhado à direita, inclusive apoiando o presidente Jair Bolsonaro, de extrema direita. E, no entanto, o guitarrista alienado de 1983 iria capturar o desejo coletivo, mas ainda não verbalizado nas ruas, de deixar para trás a ditadura. Vazada em críticas ao governo e à sociedade, com ironias sublinhadas pela concordância verbal torta, a letra de “Inútil” passeia por mazelas brasileiras. Há menções à política industrial (“a gente faz trilho e não tem trem pra botar”), ao descuido social (“a gente faz filho e não consegue criar”) e à censura (“a gente escreve peça e não consegue encenar”). Roger olha também para o próprio umbigo (“a gente faz música e não consegue gravar”) e reflete o desapontamento nacional com a Copa perdida pelo futebol-arte (“a gente joga bola e não consegue ganhar”). Foi o verso de abertura, porém, que catapultou a música ao cenário político nacional: “A gente não sabemos escolher presidente”. Era um grito que expunha frustrações e sacudia consciências, mexendo com os brios de quem, talvez vestindo a carapuça, se acomodara à impotência política. A parabólica de Roger estava voltada para o lugar certo. “Inútil” teve a primeira audição pública em abril de 1983, pouco mais de um mês depois de a emenda Dante de Oliveira ter obtido o número necessário de assinaturas para ser apreciada pelo Congresso. A então desconhecida banda Ultraje a Rigor tocou-a no Teatro Lira Paulistana, um dos endereços mais prestigiados da cena musical de vanguarda dos anos 1980 e que decidira abrir espaço para novas bandas no projeto Boca no Trombone. Gravada quase em seguida em um compacto simples, teria que aguardar por longos meses a liberação da censura. A provocação juvenil parecia incomodar os militares, como um sapo jogado na caserna. Antes de obter a autorização de Brasília, no entanto, a música chegaria aos palanques da campanha das Diretas por vias informais. Tudo começa quando André Midani, presidente da gravadora WEA, resolveu distribuir para amigos fitas cassete com a gravação inédita. Uma delas cai nas mãos do publicitário Washington Olivetto, o criador da Democracia Corintiana, que a envia a Osmar Santos.
O radialista e apresentador toca “Inútil” no seu programa na extinta rádio Excelsior, o “Balancê”, que fazia sucesso entremeando música e conversa sobre política e futebol. Na sequência, procura Roger e lhe pede autorização para reproduzi-la no sistema de som do primeiro dos grandes comícios das diretas, em 12 de janeiro de 1984, na Boca Maldita, em Curitiba. Seria a estreia de Osmar Santos como mestre de cerimônias da campanha e de “Inútil” como um de seus hinos. No palanque, Ulysses Guimarães se arrisca a cantarolar um trechinho.
Finalmente liberada pela censura, que desistiu de exigir mudanças na letra, a música emplacou, tendo contado até com a publicidade que lhe deu Ulysses. Quando Carlos Átila, porta-voz do presidente Figueiredo, declarou em seguida que as manifestações populares só serviam para “desestabilizar a sucessão”, o deputado disse à imprensa que mandaria ao funcionário do Palácio do Planalto uma cópia do single de presente.
“Ele que repita isso, que toque o disco e fique ouvindo.”
Roger estava longe de ser, entre seus pares, uma andorinha solitária no verão das Diretas. Tardio como foi, o rock brasileiro, além de abordar temas típicos da juventude, como a rebeldia e o amor, lançou um olhar crítico sobre a política nacional desde a virada da década.
Source: Trilha das Diretas teve Ultraje, Chico, Caetano e Milton – 25/02/2023 – Ilustríssima – Folha